Leonardo Alvim
Corrêa é escritor e psicólogo.
Gosta
especialmente de crônica, poesia e textos dissertativos.
O MENINO E O CHAFARIZ
UMA CRÔNICA DO ACONTECIMENTO
Manhã ensolarada de domingo. Vou
à caminhada no horto aqui próximo de casa. Vou... Assim como Thoreau ia, como
Nietsche. E tantos outros. Ah, as caminhadas...Quantas inspirações maravilhosas
aconteceram durante elas.
Faço primeiro uns alongamentos. E parto. Já há
alguns anos que ando
nesse parque. Mas hoje é diferente.
Reparo em ângulos e detalhes que não reparava
antes. Plantas, flores, passarinhos, pequenos animais, a expressão e o
comportamento das pessoas.
Tem
gente que anda como quem cumpre um dever. Apressada, ofegante, como quem quer
obsessivamente chegar a algum lugar. A chegada é importante, mas o trajeto
também.Aprendi não só a olhar, mas a ver.
O
olhar é disperso, apreende as coisas apenas superficialmente. Julga, fantasia,
tira conclusões apressadas. O ver advém de uma observação calma, objetiva,
enraizada no presente. E, geralmente, consegue extrair algo de substancial para
si dos fatos e objetos vistos. Quem vê, também pode ver além das aparências. E
isso vai se aprofundando,aumentando de
grau, parece não ter fim...
Sigo
meu passeio. Avisto, de repente, um menino correndo. Me pareceu ter por volta
de uns seis anos. Desgarrado do pai. Este, um homem jovem, alcança-o
rapidamente. Pega-o pela mão. Diz: - Pronto, acabou a correria. Perto deles,
está a irmã. Devia regular uns onze anos. Também pega na mão do pequeno.
Um
pouco atrás, sempre atrás, está a mãe. Mulher também jovem. Não tinha trinta
anos. Estamos há alguns metros de um lago com chafarizes. O menino diz : - Tô
com sede. O pai, em tom irônico, responde: - Tá com sede...
Chegamos bem próximo ao lago. Em volta, existem alguns bancos de pedra e sento-
me em um deles, como de hábito. Gosto de ficar ali, respirando, descansando da
caminhada. Ouvindo o som dos chafarizes. E contemplando...
Sou um homem mais ligado ao espírito do que à matéria. Essa é a minha natureza.
Já sofri muito por isso nessa sociedade louca, esquizofrênica, que vivemos. Mas
hoje aceito esse fato plenamente e procuro tirar o melhor disso. Volto a
observar a família. O pai, a menina e o menino estão defronte do lago. O
pequeno está encantadíssimo com os peixes. Bonitas carpas coloridas. Exclama,
aponta, faz perguntas, maravilha-se. A criança é diferente de nós, adultos. Não
está separada do presente, da existência, do acontecimento em sua plenitude.
Geralmente, não somos assim. Fomos induzidos em outra direção. Temos dificuldade
com o desenrolar natural e pleno da vida. Nossas racionalidades e
irracionalidades são como muros que nos bloqueiam. Queremos influir, modificar,
controlar demais o fluxo dos acontecimentos. A criança, não. Está ali, imersa,
entregue ao que está acontecendo. Não fica pensando sobre, simplesmente vive. A
mãe está a alguns metros deles.
Cara no celular. Rola o feed pra cima, rola o feed pra baixo. Resolve voltar o
olhar para o homem e as crianças. Exclama: - Já saíram daí os três? Passam-se
alguns minutos. Poucos. Como não se vê atendida, insiste: - Já saíram daí os
três?! O marido, então, obedece e aproxima- se um pouco mais dela com as
crianças. A mulher quer tirar fotos. Possivelmente para exibir nas redes
sociais. Começam. Primeiro, vem a menina. Ela sorri, é fotografada. Mas ainda
não é esse o sorriso que os pais querem. Eles desejam aquele, artificializado, “colgate",
" família margarina". A jovenzinha, por fim, os atende e faz a tal da
bendita expressão. Já começou a aprender a representar, deixar de ser natural.
Logo isso estará colado nela, como uma casca, uma persona, um comportamento
artificial e estereotipado, difícil de ser removido. Do menino, ainda não
domesticado, conseguem, com muito esforço, algo parecido. E, até por falta de
paciência, conformam- se, e o fotografam.
Volta o pai com as crianças para a frente do lago. O menino sempre preso a ele
pela mão. Passam-se alguns instantes. Alguma coisa acontece. Um barulho na
água. Não, não foi o pequeno que pulou. Embora certamente quisesse. A mãe, que
não moveu- se um milímetro de onde estava o tempo todo, grita: - Qual foi a
merda!?
- O chinelo dele caiu na água- responde o pai. Ela: -Sabia que ele ia fazer
isso. E, voltando as costas, ordena: - Vam... Vambora. E seu rebanhozinho a
segue, sem questionar. Exceto o menino, claro, que sai arrastado, puxado pela
mão. O pai: - Acabou a bagunça, vamos.O pequeno ainda consegue soltar- se e dispara
em direção ao lago. São as tentativas de suas linhas de fuga. Livres,
singulares, insubmissas. Mas obviamente, logo o pai o traz de volta e o
reintegra à marcha comum.Um cenário tão lindo. Sol, natureza, lago, peixes,
chafarizes. E o que viveu, o que curtiu, essa família? Tanto controle,
castração, disfarçado de zelo. Não vou dizer que não há nenhum. No entanto, é
feito de forma automatizada, fria, sem amor. A proteção excessiva desprotege.
Haverá desproteção maior do que estar separado da vida, de sua beleza, de seus
mistérios, de suas potências, de suas forças naturais e afirmativas?
PUBLICAÇÃO AUTORIZADA
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