terça-feira, 15 de março de 2022

AUTOR DO MÊS.

 



 LEONARDO ALVIM CORRÊA

Leonardo Alvim Corrêa é escritor e psicólogo. 

Gosta especialmente de crônica, poesia e textos dissertativos. 

O MENINO E O CHAFARIZ

 UMA CRÔNICA DO ACONTECIMENTO

Manhã ensolarada de domingo. Vou à caminhada no horto aqui próximo de casa. Vou... Assim como Thoreau ia, como Nietsche. E tantos outros. Ah, as caminhadas...Quantas inspirações maravilhosas aconteceram durante elas.

 Faço primeiro uns alongamentos. E parto. Já há alguns anos que ando

 nesse parque. Mas hoje é diferente.

 Reparo em ângulos e detalhes que não reparava antes. Plantas, flores, passarinhos, pequenos animais, a expressão e o comportamento das pessoas.

Tem gente que anda como quem cumpre um dever. Apressada, ofegante, como quem quer obsessivamente chegar a algum lugar. A chegada é importante, mas o trajeto também.Aprendi não só a olhar, mas a ver.

O olhar é disperso, apreende as coisas apenas superficialmente. Julga, fantasia, tira conclusões apressadas. O ver advém de uma observação calma, objetiva, enraizada no presente. E, geralmente, consegue extrair algo de substancial para si dos fatos e objetos vistos. Quem vê, também pode ver além das aparências. E isso vai se aprofundando,aumentando  de grau, parece não ter fim...

Sigo meu passeio. Avisto, de repente, um menino correndo. Me pareceu ter por volta de uns seis anos. Desgarrado do pai. Este, um homem jovem, alcança-o rapidamente. Pega-o pela mão. Diz: - Pronto, acabou a correria. Perto deles, está a irmã. Devia regular uns onze anos. Também pega na mão do pequeno.

Um pouco atrás, sempre atrás, está a mãe. Mulher também jovem. Não tinha trinta anos. Estamos há alguns metros de um lago com chafarizes. O menino diz : - Tô com sede. O pai, em tom irônico, responde: - Tá com sede...
Chegamos bem próximo ao lago. Em volta, existem alguns bancos de pedra e sento- me em um deles, como de hábito. Gosto de ficar ali, respirando, descansando da caminhada. Ouvindo o som dos chafarizes. E contemplando...
Sou um homem mais ligado ao espírito do que à matéria. Essa é a minha natureza. Já sofri muito por isso nessa sociedade louca, esquizofrênica, que vivemos. Mas hoje aceito esse fato plenamente e procuro tirar o melhor disso. Volto a observar a família. O pai, a menina e o menino estão defronte do lago. O pequeno está encantadíssimo com os peixes. Bonitas carpas coloridas. Exclama, aponta, faz perguntas, maravilha-se. A criança é diferente de nós, adultos. Não está separada do presente, da existência, do acontecimento em sua plenitude.
Geralmente, não somos assim. Fomos induzidos em outra direção. Temos dificuldade com o desenrolar natural e pleno da vida. Nossas racionalidades e irracionalidades são como muros que nos bloqueiam. Queremos influir, modificar, controlar demais o fluxo dos acontecimentos. A criança, não. Está ali, imersa, entregue ao que está acontecendo. Não fica pensando sobre, simplesmente vive. A mãe está a alguns metros deles.
Cara no celular. Rola o feed pra cima, rola o feed pra baixo. Resolve voltar o olhar para o homem e as crianças. Exclama: - Já saíram daí os três? Passam-se alguns minutos. Poucos. Como não se vê atendida, insiste: - Já saíram daí os três?! O marido, então, obedece e aproxima- se um pouco mais dela com as crianças. A mulher quer tirar fotos. Possivelmente para exibir nas redes sociais. Começam. Primeiro, vem a menina. Ela sorri, é fotografada. Mas ainda não é esse o sorriso que os pais querem. Eles desejam aquele, artificializado, “colgate", " família margarina". A jovenzinha, por fim, os atende e faz a tal da bendita expressão. Já começou a aprender a representar, deixar de ser natural. Logo isso estará colado nela, como uma casca, uma persona, um comportamento artificial e estereotipado, difícil de ser removido. Do menino, ainda não domesticado, conseguem, com muito esforço, algo parecido. E, até por falta de paciência, conformam- se, e o fotografam.
Volta o pai com as crianças para a frente do lago. O menino sempre preso a ele pela mão. Passam-se alguns instantes. Alguma coisa acontece. Um barulho na água. Não, não foi o pequeno que pulou. Embora certamente quisesse. A mãe, que não moveu- se um milímetro de onde estava o tempo todo, grita: - Qual foi a merda!?

- O chinelo dele caiu na água- responde o pai. Ela: -Sabia que ele ia fazer isso. E, voltando as costas, ordena: - Vam... Vambora. E seu rebanhozinho a segue, sem questionar. Exceto o menino, claro, que sai arrastado, puxado pela mão. O pai: - Acabou a bagunça, vamos.O pequeno ainda consegue soltar- se e dispara em direção ao lago. São as tentativas de suas linhas de fuga. Livres, singulares, insubmissas. Mas obviamente, logo o pai o traz de volta e o reintegra à marcha comum.Um cenário tão lindo. Sol, natureza, lago, peixes, chafarizes. E o que viveu, o que curtiu, essa família? Tanto controle, castração, disfarçado de zelo. Não vou dizer que não há nenhum. No entanto, é feito de forma automatizada, fria, sem amor. A proteção excessiva desprotege. Haverá desproteção maior do que estar separado da vida, de sua beleza, de seus mistérios, de suas potências, de suas forças naturais e afirmativas?

PUBLICAÇÃO AUTORIZADA


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