terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

O TEMA É CULTURA.

 


Sou da terra de Iberê Camargo

Assim como um dos maiores pintores expressionistas da segunda metade do século XX, Iberê Bassani de Camargo (1914-1994), eu nasci muito próximo a um córrego – que, no Rio Grande do Sul, se chama sanga -, onde, no final do século XIX, instalou-se uma caixa d’água para o abastecimento das antigas locomotivas a vapor e, na sequência, uma estação ferroviária que servia à Estrada de Ferro Porto Alegre (capital) – Uruguaiana (fronteira com a Argentina).
Iberê, filho de ferroviários, deixou o antigo povoado de Restinga Seca, por volta de 1920, os pais haviam sido transferidos. Contudo, segundo relatos, os primeiros rabiscos teriam sido feitos nas salas da antiga estação – mais tarde, substituída por um prédio de alvenaria. Registra-se também que uma das suas mais importantes fases na pintura, a “fase dos carretéis”,teve, como pano de fundo, os apetrechos de costura da mãe, que era telegrafista durante o dia, mas se ocupava da feitura das roupas da família, em um tempo que havia poucas, quiçá, raras lojas com vestimentas prontas.
Relatos familiares contam que, desde bem pequena, fui apaixonada pela estação ferroviária, local em que, à noite, meu pai levava-me para ver o “passageiro”, trem, evidentemente, de passageiros que, por volta de 21h, “movimentava” a pequena cidade. Meu pai também ensinou a amar, além da estação, da linha férrea e dos trens, aqueles espaços mágicos cobertos por lonas que, de tempos em tempos, apareciam na pequena cidade, eram os circos e os circo-teatros. Naqueles espaços simplórios, com representações humílimas de peças teatrais inspiradas nos grandes nomes do teatro nacional e internacional, aprendi a gostar de arte, de literatura, de teatro.
Iberê Camargo, depois de acompanhar os pais pelo interior do Rio Grande do Sul, fixou residência em Porto Alegre, seguindo, mais tarde, para o Rio de Janeiro e, de lá, para a Europa. Estudou! As suas obras – autorretratos, a fase dos carretéis, a fase das ciclistas, a fase das idiotas – tornaram-se conhecidas, expostas em Tóquio, Milão, Londres, Madri, Nova Iorque. Nunca se furtou a dizer sobre a sua origem: a velha estação férrea, próxima à caixa d’água nas proximidades de um córrego – que, no Rio Grande do Sul, se chama sanga.
Em Genebra, na Suíça, está a sede da Organização Mundial da Saúde, um esforço da humanidade que a erigiu em 1966 e, representando o Brasil, está um grande painel – de 49 metros - pintado por Iberê Camargo. Trata-se de uma pintura abstracionista, que pode ser vista a uma distância de aproximadamente 40 metros, mas que, à pequena distância, oferece nova perspectiva a quem vê.
Iberê Camargo aventurou-se ainda pelo mundo das letras e, particularmente, agrada-me Gaveta dos guardados(2009), um conjunto de textos memorialistas, organizado por Augusto Massi. Nos textos iniciais, está a nossa Restinga Seca – a dele, vivida na segunda década do século XX, recordada pela escrita nos anos 1990 e a minha, da memória e do presente. Andamos por caminhos muito parecidos, conhecemos locais que pouco mudaram. Ele lembra pessoas que lhe foram importantes. Eu tenho histórias para contar sobre as pessoas que ele conheceu. Assim é a vida... 
 Há um texto de Auguste Saint Hilaire, o viajante francês que esteve no Rio Grande do Sul entre 1820 e 1821, em que, com relativa frequência, ele menciona a Serra Geral que o acompanha do lado norte, mesmo quando passou por Restinga Seca. Por vezes, coloco-me a olhar para aqueles locais elevados e a pensar quantas cenas foram presenciadas por elas, quantas histórias poderiam contar? O meu pai, a minha mãe, os meus avós, os meus bisavós também devem ter olhado para elas e é isso, quem sabe, que nos une (ou não). Mas é bom demais saber que eles existiram, precederam-me, pavimentaram caminhos para que eu estivesse aqui. Cabe-me, pois, torná-los, até onde posso, eternos.

Elaine Dos Santos natural de Restinga Seca/RS. Possui doutorado em Letras (UFSM/2013) com ênfase em Estudos Literários.Foi professora de Língua Espanhola e Literatura.Atuou nos ensinos médio e superior, predominantemente, na disciplina de Literatura.
Érevisora de textos acadêmicos (projetos, artigos, dissertações, teses).
Autora do livro Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro itinerante (2019).
Cronista, participa de antologias nacionais e internacionais.
Membro da Alpas 21 Academia Literária de Cruz Alta/RS; da Academia Internacional União Cultural de Taubaté/SP, da Academia Internacional Mulheres de Letras e da Academia Intercontinental Sênior de Literatura e Arte.

Um comentário:

  1. Adorei ler este seu texto tão rico de memórias professora Elaine.
    A sua escrita é tão gostosa de se ler.

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