domingo, 15 de maio de 2022

O TEMA É CULTURA

 


Uma excursão ao Rio de Janeiro em 1557

 

       Oficialmente, os portugueses chegaram ao Brasil em 1500. Sobre o tema, há controvérsias. Contudo, é certo que Pero Vaz de Caminha escreveu uma Carta ao rei português contando sobre o achamento da nova terra.

            Por outro lado, sabe-se também que os franceses tentaram estabelecer uma colônia no atual território do Rio de Janeiro, por volta de 1550, a chamada França Antártica. Um dos documentos que detalham a vida dos índios tupinambás que viviam na região foi escrito pelo missionário calvinista Jean de Lery (1534-1611).

            “Viagem à terra do Brasil”, considerada, do ponto de vista literário, como Literatura dos Viajantes, conta a passagem de Jean de Lery pelo Brasil e a sua interação com os tupinambás. As suas manifestações diferem substancialmente daquelas conhecidas na Carta de Caminha. Enquanto o escrevente português demonstra, com clareza, o interesse exploratório da frota de Pedro Álvares Cabral, o francês Jean de Lery parece buscar compreender a vida entre os nativos, dando-lhes, inclusive, “voz” em sua narrativa.

            Além de um prefácio e alguns sonetos, o texto é composto por vinte e dois capítulos, sendo que seis capítulos versam sobre a partida da terra natal, a viagem e a chegada ao Brasil. Em continuidade, é descrito o Brasil, o seu povo e, finalmente, a viagem de regresso a França.

            Há descrições sobre a flora, a fauna, os costumes dos tupinambás, mas existe, sobretudo, uma tentativa de compreensão, por exemplo, do ritual de antropofagia entre os nativos. Cabe, aqui, lembrar o famoso poema romântico/indianista de Gonçalves Dias, “I-Juca Pirama”, em que o pai cego, reconhecendo pelo cheiro das tintas que o filho havia preparado para ser morto em um desses rituais, exige que o filho o leve à tribo inimiga e que o jovem morra com coragem. A antropofagia não era meramente um ritual de “comer carne humana”, mas ingerir a coragem daquele que morria em combate.

            O que nos chama a atenção, especialmente, observando do ponto de vista da sociedade neoliberal de cunho capitalista do século XXI, é uma passagem em que o velho guerreiro tupinambá questiona o missionário sobre a ganância dos homens brancos que atravessam o Oceano Atlântico em frágeis caravelas em busca de riquezas.

“Os nossos tupinambás muito se admiram dos franceses e outros estrangeiros se darem ao trabalho de ir buscar o seu arabutan [pau-brasil]. Uma vez um velho perguntou-me: Por que vindes vós outros, maírs e perôs (franceses e portugueses) buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra? Respondi que tínhamos muita mas não daquela qualidade, e que não a queimávamos, como ele o supunha, mas dela extraíamos tinta para tingir, tal qual o faziam eles com os seus cordões de algodão e suas plumas.

Retrucou o velho imediatamente: e porventura precisais de muito? Sim, respondi-lhe, pois no nosso país existem negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias do que podeis imaginar e um só deles compra todo o pau-brasil com que muitos navios voltam carregados. — Ah! retrucou o selvagem, tu me contas maravilhas, acrescentando depois de bem compreender o que eu lhe dissera: mas esse homem tão rico de que me falas não morre? — Sim, disse eu, morre como os outros. Mas os selvagens são grandes discursadores e costumam ir em qualquer assunto até o fim, por isso perguntou-me de novo: e quando morrem para quem fica o que deixam? — Para seus filhos se os têm, respondi; na falta destes para os irmãos ou parentes mais próximos. 

 — Na verdade, continuou o velho (...) agora vejo que vós outros maírs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados.

Este discurso, aqui resumido, mostra como esses pobres selvagens americanos, que reputamos bárbaros, desprezam àqueles que com perigo de vida atravessam os mares em busca de pau-brasil e de riquezas. Por mais obtusos que sejam, atribuem esses selvagens maior importância à natureza e à fertilidade da terra do que nós ao poder e à providência divina; insurgem-se contra esses piratas que se dizem cristãos e abundam na Europa tanto quanto escasseiam entre os nativos.” (Viagem à terra do Brasil, capítulo 13).

            A reflexão fica com o leitor.

Elaine dos Santos
Natural de Restinga Seca/RS. Possui doutorado em Letras (UFSM/2013) com ênfase em Estudos Literários. Foi professora de Língua Espanhola e Literatura. Atuou nos ensinos médio e superior, predominantemente, na disciplina de Literatura.
É revisora de textos acadêmicos (projetos, artigos, dissertações, teses).
Autora do livro Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro itinerante (2019).
Cronista, participa de antologias nacionais e internacionais.
Membro da Alpas 21 Academia Literária de Cruz Alta/RS; da Academia Internacional União Cultural de Taubaté/SP, da Academia Internacional Mulheres de Letras e da Academia Intercontinental Sênior de Literatura e Arte.

 

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