Uma excursão ao Rio de Janeiro em 1557
Oficialmente, os
portugueses chegaram ao Brasil em 1500. Sobre o tema, há controvérsias.
Contudo, é certo que Pero Vaz de Caminha escreveu uma Carta ao rei português
contando sobre o achamento da nova terra.
Por outro lado, sabe-se também que
os franceses tentaram estabelecer uma colônia no atual território do Rio de
Janeiro, por volta de 1550, a chamada França Antártica. Um dos documentos que
detalham a vida dos índios tupinambás que viviam na região foi escrito pelo
missionário calvinista Jean de Lery (1534-1611).
“Viagem à terra do Brasil”,
considerada, do ponto de vista literário, como Literatura dos Viajantes, conta
a passagem de Jean de Lery pelo Brasil e a sua interação com os tupinambás. As
suas manifestações diferem substancialmente daquelas conhecidas na Carta de
Caminha. Enquanto o escrevente português demonstra, com clareza, o interesse
exploratório da frota de Pedro Álvares Cabral, o francês Jean de Lery parece
buscar compreender a vida entre os nativos, dando-lhes, inclusive, “voz” em sua
narrativa.
Além de um prefácio e alguns
sonetos, o texto é composto por vinte e dois capítulos, sendo que seis
capítulos versam sobre a partida da terra natal, a viagem e a chegada ao
Brasil. Em continuidade, é descrito o Brasil, o seu povo e, finalmente, a
viagem de regresso a França.
Há descrições sobre a flora, a fauna,
os costumes dos tupinambás, mas existe, sobretudo, uma tentativa de
compreensão, por exemplo, do ritual de antropofagia entre os nativos. Cabe,
aqui, lembrar o famoso poema romântico/indianista de Gonçalves Dias, “I-Juca
Pirama”, em que o pai cego, reconhecendo pelo cheiro das tintas que o filho
havia preparado para ser morto em um desses rituais, exige que o filho o leve à
tribo inimiga e que o jovem morra com coragem. A antropofagia não era meramente
um ritual de “comer carne humana”, mas ingerir a coragem daquele que morria em
combate.
O que nos chama a atenção,
especialmente, observando do ponto de vista da sociedade neoliberal de cunho
capitalista do século XXI, é uma passagem em que o velho guerreiro tupinambá
questiona o missionário sobre a ganância dos homens brancos que atravessam o
Oceano Atlântico em frágeis caravelas em busca de riquezas.
“Os nossos tupinambás muito se admiram
dos franceses e outros estrangeiros se darem ao trabalho de ir buscar o
seu arabutan [pau-brasil].
Uma vez um velho perguntou-me: Por que vindes vós outros, maírs e
perôs (franceses e portugueses) buscar lenha de tão longe para vos
aquecer? Não tendes madeira em vossa terra? Respondi que tínhamos muita mas não
daquela qualidade, e que não a queimávamos, como ele o supunha, mas dela
extraíamos tinta para tingir, tal qual o faziam eles com os seus cordões de
algodão e suas plumas.
Retrucou o velho imediatamente: e
porventura precisais de muito? Sim, respondi-lhe, pois no nosso país existem
negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras
mercadorias do que podeis imaginar e um só deles compra todo o pau-brasil com
que muitos navios voltam carregados. — Ah! retrucou o selvagem, tu me contas
maravilhas, acrescentando depois de bem compreender o que eu lhe dissera: mas
esse homem tão rico de que me falas não morre? — Sim, disse eu, morre como os
outros. Mas os selvagens são grandes discursadores e costumam ir em qualquer
assunto até o fim, por isso perguntou-me de novo: e quando morrem para quem
fica o que deixam? — Para seus filhos se os têm, respondi; na falta destes para
os irmãos ou parentes mais próximos.
— Na verdade, continuou o velho
(...) agora vejo que vós outros maírs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e
sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto
para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem!
Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos
pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa
morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem
maiores cuidados.
Este discurso, aqui resumido, mostra
como esses pobres selvagens americanos, que reputamos bárbaros, desprezam
àqueles que com perigo de vida atravessam os mares em busca de pau-brasil e de
riquezas. Por mais obtusos que sejam, atribuem esses selvagens maior
importância à natureza e à fertilidade da terra do que nós ao poder e à
providência divina; insurgem-se contra esses piratas que se dizem cristãos e
abundam na Europa tanto quanto escasseiam entre os nativos.” (Viagem à terra do
Brasil, capítulo 13).
A reflexão fica com
o leitor.
Natural de Restinga Seca/RS. Possui doutorado em Letras (UFSM/2013) com ênfase em Estudos Literários. Foi professora de Língua Espanhola e Literatura. Atuou nos ensinos médio e superior, predominantemente, na disciplina de Literatura.
É revisora de textos acadêmicos (projetos, artigos, dissertações, teses).
Autora do livro Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro itinerante (2019).
Cronista, participa de antologias nacionais e internacionais.
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