Querido bebê de Audrey Witz
Fui capturada quando estava no oitavo mês. Muito embora não parecesse, tamanha era minha miséria, você passou despercebida em mim, uma vez que me alimentava de quase nada. A miséria já nos rondava há tempo. Integrada ao grupo de trabalhos na lavoura, eu, desde as primeiras horas do dia, ia para o campo arar a terra, plantar, colher e cuidar para que o alimento crescesse e estivesse farto à mesa dos militares de alta patente do campo. Para nós pouco sobrava. Você nasceu numa dessas manhãs. Chegou indiferente ao que acontecia ao seu redor e chorou seu primeiro choro entre cobertas sujas e retalhos de roupa que outras mulheres me ofereceram sem perguntar nada. Logo veio a dor da separação e nunca mais pude colocar meus olhos em você. Segui trabalhando sem esperança de salvar meu corpo e minha alma. Sabia que ambos estavam perdidos. Minha única alegria foi descobrir, depois de algum tempo, que você fora acolhida pela esposa infértil de um combatente. Não sei como caiu nas graças da família. Só o que soube foi que a receberam e a adotaram como filha. Fato incomum naquele cenário tão cruel da guerra. O tempo passou. Ali o chuveiro não funcionava. Toda mão-de-obra era bem-vinda. Éramos milhares de trabalhadoras a cuidar da terra. Os caminhões chegavam e saíam toda semana carregados de frutas e hortaliças. O trabalho duro, a miséria e os maus tratos minavam nossas forças ano a ano. A fraqueza era tanta que, muitas vezes, cambaleava apoiada nas companheiras de infortúnio. Somente um caldo ralo nos era oferecido ao final do dia. E ele minguava minhas energias lentamente. Nutria-me apenas da vã esperança de tê-la em meus braços. Um dia aconteceu. Eu a vi. Corria entre as macieiras. Estava mais ou menos com sete anos. A noção do tempo divergia ali. Eu e algumas mulheres cuidávamos do pomar. Era tempo de colheita. Você se aproximou. Parou e ficou me olhando. Estava com um vestido florido, cheio de rendas e babados que lhe realçava a beleza pueril. Aqueles olhos azuis fixaram-se em mim. Tinham uma expressão vazia. Ofereci um sorriso que você devolveu com uma cuspida no meu rosto. Limpei a saliva e o desprezo que vi no seu olhar, minha filha. De repente, correu ao ouvir a mãe chamando. Eu nem consegui ouvir seu nome. Você era deles agora. E eu, para sempre, uma prisioneira do campo de Audrey Witz… Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com alguma história real não é mera coincidência, é uma possibilidade real.
Cristina
Gomes, Cris Gomes como
gosta de ser chamada, é professora e poeta. Apesar do tempo, ainda tem
esperanças que quer ver transformadas em realidade, sonhos que quer lapidar e
objetivos a alcançar. Moradora de São Paulo, vive as delícias dessa metrópole e
também as suas nuances não tão floridas. Adora a solidão dos livros, mas
valoriza a qualidade dos relacionamentos. É apaixonada por chocolate amargo,
vinhos, livrarias e pela vida simples. Atua como membro da comissão de juradas
da revista internacional The Bard e participou como co-autora de diversas
antologias: Poesiaterapia - palavras que curam, Almas Cativas, Florir Poético,
Tributo à vida, entre outras.
Projeto Fundo do Baú criação e edição de Shirlei Pinheiro.
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